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TÃO LONGE, TÃO PERTO.

LEGIÃO URBANA. Que país é este. 1978-1987. EMI, 1987.

Em nosso país, a década de 1980 serviu de palco para grandes mudanças políticas e sociais. Os militares haviam devolvido o comando do Brasil ao setor civil e Tancredo Neves havia sido eleito presidente da República pelo Colégio Eleitoral. Entretanto, faleceu antes de sua posse. Seu vice-presidente, José Sarney, “o protótipo do político ao velho estilo brasileiro”[1], assume o comando do país e lança sucessivos planos econômicos, durante seu mandato, com a intenção de debelar a grave crise econômica que assolava o Brasil.
O “milagre econômico” dos anos 1970 tinha dado lugar à “década perdida” da década de 1980. As manchetes dos jornais estampavam em letras garrafais:  inflação, desemprego e recessão.

O rock, estilo musical contestador, serviu como catalisador das aspirações, frustrações e sentimentos da juventude da época. Em dezembro de 1987, quando “a inflação acumulada no ano chegou a 365,99%, a Legião Urbana registrou em disco uma velha canção”[2]: Que país é este.

Segundo o encarte, que acompanhava o LP, Que país é este nunca fora gravada antes “porque sempre havia a esperança de que algo iria realmente mudar no país, tornando-se [...] totalmente obsoleta”[3]. O fim do regime militar e a chegada da Nova República traduziam esta esperança de mudança, o que tornaria a mensagem da canção temporal e ultrapassada.

Entretanto, mesmo passados mais de trinta anos de sua criação, a temática elencada pela canção está mais atual do que nunca. O discurso de perplexidade com a situação de corrupção vigente e descaso com o social que permeou a criação de Que país é este, ainda durante o tempo de existência da banda punk Aborto Elétrico, no distante ano de 1978, só lançada comercialmente em 1987, poderia servir de discurso hoje. A sua contemporaneidade pode ser associada tanto à sua época de criação, fins dos anos 1970, quanto ao momento de seu lançamento como produto comercial, meados dos anos 1980, bem como o momento atual, repleto de embates ideológicos e casos de corrupção estampando as manchetes jornalísticas.

Ao ser lançado como produto em 1987, o disco redirecionava sua pergunta àquele recorte temporal. Mesmo tendo sida escrita em outro contexto (1978), Que país é este serviu perfeitamente como indagação e perplexidade de uma juventude diante do fracasso da Nova República.

À época do lançamento de Que país é este,  a crítica musical classificou a música como um “som cru, abrasivo”[4] , que nos remetia a sonhos falazes, ou seja que nos levava à ilusão. Como se o sonho da redemocratização houvesse se transfigurado em pesadelo.

Os atores haviam mudado, os problemas não. João Figueiredo, último  presidente-general havia passado o poder para José Sarney. Os militares voltaram aos quartéis e o setor civil não foi capaz de resolver os problemas financeiros em que se achava mergulhado o Brasil.
Em fevereiro de 1986, Sarney lançava o Plano Cruzado, numa tentativa de conter a inflação, congelando preços e salários[5], trocando a moeda nacional de cruzeiro para cruzado, cortanto três zeros, ou seja, 1.000 cruzeiros se converteriam em 1 cruzado. As donas de casa se transformaram nas “fiscais do Sarney” e a inflação foi dominada na marra.

Entretanto, o Plano Cruzado não havia passado de estelionato eleitoral. Nas eleições realizadas em 1986, a grande maioria dos votos foram dados aos candidatos do PMDB, partido de Sarney, o qual elegeu a grande maioria de governadores dos estados, além da maioria na Câmara dos deputados e do Senado[6].

Horas após o resultado das eleições, o presidente da República autoriza o descongelamento de preços, pois faltava de tudo nas prateleiras dos supermercados, o que causava grandes filas para se conseguir comprar produtos alimentícios. Alguns comerciantes, inclusive, vendiam seus produtos com ágio[7].

Com a inflação de volta – em 1987 seria de 415% e em 1988 chegaria a 1.037% - o descongelamento dos preços ao consumidor não foi eficiente para combater a falta de produtos. Muito pelo contrário, com medo dos repetidos reajustes, as pessoas compravam para estocar.

Por ser um registro de uma época conturbada nos cenários político e econômico, tal como os dias atuais, e ter funcionado como um catalisador das aspirações, frustrações e anseios de uma geração, Que país é este. 1978-1987 é um disco que você tem que ouvir antes de morrer.




[1] SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 484.
[2] ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta. O rock e o Brasil dos anos 80. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013. p. 312.
[3] QUE PAÍS É ESTE. [Encarte]. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1987. p. 2.
[4] DUARTE, Arthur Couto. Que país é este: 1978 - 1987. Bizz, São Paulo, n. 31, p. 21, fev. 1988.
[5] RAMOS, Eliana Batista. Rock dos anos 80: A construção de uma alternativa de contestação juvenil. Dissertação para obtenção do título de mestre em História Social. São Paulo: PUC, 2010. p. 69.
[6] Ibidem, p. 70.
[7] ROCHEDO, Aline do Carmo. Os filhos da revolução: A juventude urbana e o rock brasileiro dos anos 1980. Dissertação para obtenção do título de mestre em História Social. Niterói: UFF, 2011. p. 81.

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